CIDADE DO VATICANO, domingo, 5 de dezembro de 2010 (
ZENIT.org)
- Apresentamos a primeira pregação do Advento pronunciada na última
sexta-feira pelo Pe. Raniero Cantalamessa OFM cap, pregador da Casa
Pontifícia, diante de Bento XVI e da cúria romana, sobre "A resposta
cristã ao cientificismo ateu".
* * *
Primeira Pregação do Advento
"Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: Que coisa é o homem?" (Sal 8, 4-5)
A resposta cristã ao cientificismo ateu
1. A tese do cientificismo ateu
As três meditações deste Advento 2010 querem ser uma pequena
contribuição à necessidade da Igreja que levou o Santo Padre Bento XVI a
instituir o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização e
escolher este tema para a próxima Assembleia geral ordinária do Sínodo
dos Bispos:
Nova evangelizatio ad cristianam fidem tradendam - A nova evangelização para a transmissão da fé cristã.
A intenção é identificar alguns "nós" ou obstáculos que fazem muitos
países de antiga tradição cristã "refratários" à mensagem do Evangelho,
como diz o Santo Padre no
Motu Proprio com o qual estabeleceu o
novo Conselho [1]. Os "nós" ou os desafios que eu pretendo levar em
consideração e aos quais eu gostaria de tentar dar uma resposta de fé
são o cientificismo, o secularismo e o racionalismo. O apóstolo Paulo
classifica esses desafios como "as muralhas e fortalezas que se levantam
contra o conhecimento de Deus" (cf. 2 Cor 10:4).
Nesta
primeira meditação examinemos o cientificismo. Para compreender o que se
entende com este termo podemos começar pela descrição feita por João
Paulo II:
"Outro perigo a ser considerado é o
cientificismo.
Esta concepção filosófica recusa-se a admitir, como válidas, formas de
conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas,
relegando para o âmbito da pura imaginação tanto o conhecimento
religioso e teológico, como o saber ético e estético." [2].
Podemos resumir assim a tese principal desta corrente de pensamento:
Primeira tese.
A
ciência e, particularmente a cosmologia, a física e a biologia, são a
única forma objetiva e séria de conhecimento da realidade. "As
sociedades modernas, escreveu Monod, estão construídas sobre a ciência.
Devem a ela sua riqueza, sua potência e a certeza de que a riqueza e o
poder ainda serão maiores e mais acessíveis amanhã ao homem, se ele o
quiser [...]. Equipadas com todo o poder, dotadas de toda riqueza que a
ciência oferece, nossas sociedades ainda tentam viver e ensinar sistemas
de valores, já prejudicados pela mesma ciência subjacente" [3].
Segunda tese.
Esta forma de conhecimento é incompatível com a fé que se baseia em pressupostos que não são nem demonstráveis nem refutáveis
Nesta linha, o ateu militante R. Dawkins chega ao ponto de chamar de
"analfabetos" os cientistas que se dizem crentes, esquecendo-se de
tantos cientistas mais famosos do que ele que já se declararam e
continuam declarando-se crentes.
Terceira tese.
A ciência já demonstrou a falsidade ou, pelo menos, a inutilidade da hipótese de Deus. É
a afirmação que recebeu ampla cobertura dos meios de comunicação do
mundo meses atrás, à raiz de uma declaração do astrofísico inglês
Stephen Hawking. Este, ao contrário do que já havia escrito
anteriormente, sustenta em seu último livro
The Grand Design, que
o conhecimento advindo da física torna desnecessário acreditar numa
divindade criadora do universo: "a criação espontânea é a razão pela
qual as coisas existem".
Quarta tese.
Quase a totalidade ou a grande maioria dos cientistas são ateus. Esta é a afirmação do ateísmo científico militante, que tem em Richard Dawkins, autor do livro
God's Delusion (Deus, um delírio), seu mais ativo propagador.
Todos estes argumentos se revelam falsos, não do ponto de vista do raciocínio
a priori
ou da argumentação teológica e da fé, mas da própria análise dos
resultados da ciência e das opiniões de vários cientistas ilustres do
passado e do presente. Um cientista do calibre de Max Planck, o pai da
física quântica, diz sobre a ciência aquilo que Agostinho, Tomás de
Aquino, Pascal, Kierkegaard e outros já tinham afirmado sobre a razão:
"A ciência leva a um ponto, além dele não pode mais dirigir" [4].
Não repetirei a refutação dos argumentos anunciados que já foi feita
por cientistas e filósofos competentes. Cito, por exemplo, a crítica
pontual de Roberto Timossi, no livro
L'illusione dell'ateismo. Perché la scienza non nega Dio
(A ilusão do ateísmo. Porque a ciência não nega Deus), que tem
apresentação do cardeal Angelo Bagnasco (Edições São Paulo 2009).
Limito-me a uma observação elementar. Na semana em que a mídia espalhou a
declaração acima, de que a ciência tornou desnecessária a hipótese de
um criador, eu me vi na necessidade, na homilia de domingo, de explicar
a cristãos muito simples de uma cidade de Reatino onde estava o erro
fundamental de cientistas e ateus e porque não deveriam ficar
impressionados com a sensação despertada por essa declaração. Fiz isso
com um exemplo que pode ser útil repetir aqui em um contexto tão
diferente.
"Existem aves noturnas, como a coruja, cujos olhos
são feitos para ver no escuro da noite, não de dia. A luz do sol cega.
Estes pássaros sabem tudo e se movem com agilidade no mundo noturno, mas
não são ninguém no mundo diurno. Vamos adotar, por um momento, o tipo
de fábulas nas quais os animais falam uns com os outros. Suponha que uma
águia faça amizade com uma família de corujas e converse com elas sobre
o sol: como ele ilumina tudo, como, sem ele, tudo iria mergulhar no
escuro e no frio, como seu próprio mundo noturno não existiria sem o
sol. O que diria a coruja? "Você mente! Nunca vi o seu sol. Nos movemos
muito bem e conseguimos alimento sem ele. Seu sol é uma hipótese inútil,
não existe".
É exatamente isso que faz o cientista ateu quando
diz: "Deus não existe". Julga um mundo que não conhece, aplica suas
leis a um objeto que está fora do seu alcance. Para ver Deus é
necessário olhar com uma perspectiva diferente, aventurar-se fora da
noite. Neste sentido, ainda é válida a antiga afirmação do salmista:
"Diz o insensato: Deus não existe".
2. Não ao cientificismo, sim à ciência
A rejeição do cientificismo não deve, naturalmente, levar à rejeição ou
à desconfiança na ciência, assim como uma rejeição do racionalismo não
nos leva a rejeitar a razão. Fazer o contrário seria um desserviço à fé,
antes mesmo que à ciência. A história tem nos ensinado dolorosamente
onde nos leva uma atitude como essa.
De uma atitude aberta e
construtiva à ciência, nos deu um exemplo luminoso o novo beato John
Henry Newman. Nove anos depois da publicação da obra de Darwin sobre a
evolução das espécies, quando não poucas pessoas ao redor se mostravam
turbadas e perplexas, ele assegurava, exprimindo um juízo que antecipava
o juízo atual da Igreja sobre a não incompatibilidade da teoria com a
fé católica. Vale a pena escutar novamente trechos centrais da sua carta
ao canônico J. Walker, que ainda conservam grande parte de sua
validade:
"Essa [a teoria de Darwin] não me assusta [...] Não
me parece que se negue a criação pelo fato do Criador, milhões de anos
atrás, ter imposto leis à matéria. Não negamos nem delimitamos o Criador
por ter criado a ação autônoma que deu origem ao intelecto humano
dotado quase de um talento criativo; menos ainda negamos ou delimitamos
seu poder se acreditamos que Ele tenha assinado leis à matéria tais como
plasmar e construir mediante a instrumentalidade cega através de eras
inumeráveis o mundo como o vemos hoje [...]. A teoria do senhor Darwin
não deve ser
necessariamente ateia, que ela seja verdadeira ou
não; pode simplesmente estar surgindo uma ideia mais alargada da Divina
Presciência e Capacidade... À primeira vista, não vejo como a ‘evolução
casual de seres orgânicos' seja incoerente com o plano divino - É casual para
nós, não para
Deus" [5].
Sua grande fé permitia que Newman visse com grande serenidade as
descobertas científicas presentes ou futuras. "Quando uma enxurrada de
fatos, reais ou presumidos, surge enquanto outros já se avizinham, todos
os crentes, católicos ou não, se sentem chamados a examinar o
significado destes fatos" [6]. Ele via nestas descobertas "uma conexão
indireta com as opiniões religiosas". Um exemplo desta conexão, acredito
eu, é o próprio fato de que, no mesmo ano em que Darwin elaborava a
teoria da evolução das espécies, ele, independentemente, anunciava sua
doutrina do "desenvolvimento da doutrina cristã". Referindo-se à
analogia, neste ponto, entre a ordem natural e física e a moral, ele
escreveu: "Como o Criador descansou no sétimo dia após o trabalho
realizado e ainda hoje ele ‘continua agindo', assim ele comunicou de uma
vez por todas o Credo no princípio e continua favorecendo seu
desenvolvimento e garantindo seu crescimento" [7].
Da atitude
nova e positiva da Igreja católica em relação à ciência é expressão
concreta a Academia Pontifícia das Ciências, na qual cientistas
eminentes de todo o mundo, crentes e não crentes, encontram-se para
expor e debater suas ideias sobre problemas de interesse comum para a
ciência e para a fé.
3. O homem para o universo ou o universo para o homem?
Mas, repito, não é minha intenção fazer aqui uma crítica geral do
cientificismo. O que gostaria de destacar é um aspecto particular de
algo que tem um impacto direto e decisivo sobre a evangelização:
trata-se da posição que o homem ocupa na visão do cientificismo ateu.
Há agora uma corrida entre os cientistas não crentes, especialmente os
biólogos e cosmólogos, que vai mais longe ao afirmar a total
marginalização e insignificância do homem no universo e mesmo no grande
mar da vida. "A antiga aliança é quebrada - Monod escreveu -; o homem
finalmente se sabe sozinho na imensidão do Universo do qual emergiu por
acaso. Seu dever, como seu destino, não está escrito em nenhum lugar"
[8]. "Sempre pensei - afirma outro - ser insignificante. Conhecendo as
dimensões do Universo não chego a compreender quanto o sou
verdadeiramente... Somos somente um pouco de lama sobre um planeta que
pertence ao sol" [9].
Blaise Pascal refutou de antemão esta tese com um argumento que ainda mantém seu vigor:
"O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço
pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para o aniquilar:
um vapor, uma gota de água, bastam para o matar. Mas quando o universo o
aniquilasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque
sabe que morre, e a superioridade que o universo tem sobre ele; o
universo não sabe nada disso." [10].
A visão cientificista da
realidade, junto com o homem, retira subitamente do centro do universo
inclusive Cristo. Ele é reduzido, por usar uma expressão de M. Blondel, a
"um acidente histórico, isolado do cosmo como um episódio postiço, um
intruso ou um perdido na imensidão hostil e esmagadora do Universo"
[11].
Esta visão do homem começa a ter reflexos práticos na
cultura e na mentalidade. Explicam-se assim certos excessos do
ecologismo que tendem a equiparar os direitos dos animais e até das
plantas aos direitos do homem. É sabido que existem animais mais bem
cuidados e alimentados que milhões de crianças. A influência é sentida
inclusive no campo religioso. Há formas difusas de religiosidade nas
quais o contato e a sintonia com a energia do cosmo tomaram o lugar do
contato com Deus como caminho de salvação. Aquilo que Paulo dizia de
Deus: "Pois nele vivemos, nos movemos e existimos" (At. 17, 28), diz
aqui do cosmo material.
De certa forma, trata-se do retorno à
era pré-cristã como regime de vida: Deus - universo - homem, à qual a
Bíblia e o Cristianismo opuseram o regime: Deus - homem - universo. Uma
das acusações mais violentas que o pagão Celso faz aos judeus e cristãos
é a de dizer que "há Deus e, logo depois dele, nós, desde que fomos
criados por ele à sua semelhança; tudo nos é subordinado: a terra, a
água, o ar, as estrelas, tudo existe por nós e está ordenado ao nosso
serviço" [12].
Mas há ainda uma profunda diferença: no
pensamento antigo, principalmente o grego, o homem, mesmo subordinado ao
universo, possui uma ‘dignidade altíssima', como mostrou a obra
magistral de Max Pohlenz, "O homem grego" [13]; aqui parece que há
prazer em deprimir o homem e tirar dele qualquer pretensão de
superioridade sobre o resto da natureza. Mais que "humanismo ateu", pelo
menos a partir deste ponto de vista, deveríamos falar, no meu modo de
ver, de anti-humanismo, ou mesmo "desumanismo ateu".
Chegamos
agora à visão cristã. Celso não estava errado em derivá-la da grande
afirmação do Gênesis 1, 26 sobre o homem criado "à imagem e semelhança
de Deus [14]. A visão bíblica encontra sua mais esplêndida expressão no
Salmo 8:
"Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos,
vejo a lua e as estrelas que criaste:
Que coisa é o homem, para dele te lembrares,
que é o ser humano, para o visitares?
No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus,
de glória e de honra o coroaste.
Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos.
Tudo puseste sob os seus pés".
A criação do homem à imagem de Deus possui implicações de certa forma
chocantes sobre o conceito de homem que o debate atual nos empurra a
trazer à luz. Tudo se baseia na revelação da Trindade trazida por
Cristo. O homem é criado à imagem de Deus, o que significa que ele
compartilha a essência íntima de Deus que é a relação amorosa entre Pai,
Filho e Espírito Santo. É claro que existe uma lacuna ontológica entre
Deus e a criatura. No entanto, pela graça, (jamais esqueçam esta
afirmação!) esta lacuna é preenchida, de modo que é menos profunda do
que entre o homem e o resto da criação.
Somente o homem, de
fato, como uma pessoa capaz de relacionar-se, participa da dimensão
pessoal e relacional de Deus, é sua imagem. O que significa que, na sua
essência, embora a um nível de criatura, é o que, no nível incriado, são
o Pai, o Filho e o Espírito Santo, em sua essência. A pessoa criada é
"pessoa" propriamente por esse núcleo racional que a torna capaz de
acolher o relacionamento que Deus quer estabelecer com ela e, ao mesmo
tempo, torna-se um gerador de relações para os outros e o mundo.
4. A força da verdade
Vejamos como se poderia traduzir esta visão cristão da relação
homem-universo no campo da evangelização. Primeiro, um prefácio.
Resumindo o pensamento do mestre, um discípulo de Dionísio Areopagita
enunciou esta grande verdade: "Não se deve refutar a opinião dos outros,
nem se deve escrever contra uma opinião ou religião que não parece boa.
Se deve escrever só a favor da verdade e não contra os outros" [15].
Não se pode absolutizar este princípio (às vezes pode ser útil e
necessário refutar doutrinas falsas), mas é certo que a exposição
positiva da verdade é, muitas vezes, mais eficaz que a refutação do erro
contrário. É importante, creio, tomar em conta este critério na
evangelização e especialmente no confronto com os três obstáculos
mencionados anteriormente: cientificismo, secularismo e racionalismo. Na
evangelização, é mais eficaz que a polêmica contra eles, a exposição
pacífica da visão cristã, contando com a força inerente desta quando
acompanhada de profunda convicção e feita, como incutia São Pedro, "com
doçura e respeito" (1 Pe 3, 16).
A maior expressão da dignidade
e da vocação do homem, segundo a visão cristã, foi cristalizada na
doutrina da deificação do homem. Esta doutrina não teve tanta
importância na Igreja Ortodoxa quanto na latina. Os Padres gregos,
superando todos custos que o uso de pagão tinha acumulado sobre o
conceito de deificação (
theosis), fizeram dele o centro de sua
espiritualidade. A teologia latina tem insistido menos sobre ela. "O
propósito da vida para os cristãos gregos - lê-se no
Dictionnaire des Spiritualitè
- é a divinização, o que para os cristãos do Ocidente é a aquisição da
santidade... O Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para
devolver ao homem semelhança de Deus perdida em Adão e para divinizá-lo.
Para os latinos, ele se fez homem para redimir a humanidade... e para
pagar a dívida com a justiça de Deus" [16]. Poderíamos dizer,
simplificando ao máximo, que a teologia latina, depois de Agostinho,
insiste sobre o que Cristo veio tirar - o pecado -, e a grega insiste
mais sobre o que ele veio dar aos homens: a imagem de Deus, o Espírito
Santo e a vida divina.
Não se deve forçar demais esta oposição,
como às vezes tendem a fazer alguns autores ortodoxos. A
espiritualidade latina, por vezes, expressa o mesmo ideal ainda que
evite o termo divinização, que, é bom lembrar, é estranho à linguagem
bíblica. Na liturgia das horas da noite de Natal, vamos ouvir a vibrante
exortação de São Leão Magno, que expressa a mesma visão da vocação
cristã: "Reconhece, ó cristão, a tua dignidade. Uma vez constituído
participante da natureza divina, não penses em voltar às antigas
misérias da tua vida passada. Lembra-te de que cabeça e de que corpo és
membro" [17].
Infelizmente, alguns autores ortodoxos
mantiveram-se firmes à controvérsia do século XIV, entre Gregório
Palamas e Barlaam, e parecem ignorar a rica tradição mística latina. A
doutrina de São João da Cruz, por exemplo, de que os cristãos, redimidos
por Cristo e tornados filhos no Filho, estão imersos no fluxo das
operações trinitárias e participam da vida íntima de Deus não é menos
elevada que a da divinização, ainda que se expresse em termos
diferentes. Também a doutrina sobre os dons da inteligência e da
sabedoria do Espírito Santo, tão cara a São Boaventura e autores
medievais, estava animada pelo mesma inspiração mística.
Não
pode, contudo, deixar de reconhecer que a espiritualidade ortodoxa tem
algo a ensinar sobre este ponto ao resto da cristandade, à teologia
protestante ainda mais do que à teologia católica. Se existe realmente
alguma coisa verdadeiramente oposta à visão ortodoxa do cristão deficado
pela graça é a concepção protestante, particularmente a luterana, da
justificação extrínseca e legal de que o homem redimido é, "ao mesmo
tempo, justo e pecador", pecador em si mesmo, justo diante de Deus.
Acima de tudo, podemos aprender com a tradição oriental a não reservar
esse ideal sublime da vida cristã a uma elite espiritual chamada a
percorrer os caminhos da mística, mas oferecê-lo a todos os batizados,
torná-lo objeto de catequese para o povo, de formação religiosa nos
seminários e noviciados. Se volto a pensar nos meus anos de formação, me
lembro de ter visto uma ênfase quase exclusiva na ascese que centrava
tudo na correção de vícios e na aquisição da virtude. Quando perguntado
pelos discípulos sobre o objetivo final da vida cristã, um santo russo,
São Serafim de Sarov, respondeu sem hesitação: "A verdadeira finalidade
da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo de Deus. Quanto à oração,
o jejum, vigílias, esmolas e outras boas obras feitas em nome de
Cristo, são apenas meios para adquirir o Espírito Santo" [18].
5. "Tudo foi feito por meio dele"
O Natal é a ocasião ideal para voltar a propor a nós mesmos e aos
demais este ideal, patrimônio comum da cristandade. É da encarnação do
Verbo que os Padres gregos derivam a própria possibilidade da
divinização. São Atanásio não se cansa de repetir: "O Verbo se fez homem
para que pudéssemos nos tornar Deus" [19]. "Ele se encarnou e o homem
tornou-se Deus, porque se uniu a Deus", escreve por sua vez São Gregório
Nazianzeno [20]. Com Cristo, é restaurado ou trazido à luz aquele ser
"à imagem de Deus" que é a base da superioridade do homem sobre o
restante da criação.
Dizia antes como a marginalização do homem
traz consigo automaticamente a marginalização de Cristo do universo e
da história. Ainda sobre este ponto de vista o Natal é a antítese mais
radical da visão cientificista. Sobre isso, escutaremos proclamar
solenemente: "Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de
tudo o que existe" (Jo. 1,3); "pois é nele que foram criadas todas as
coisas, tudo foi criado através dele e para ele" (Col 1,16). A Igreja
assumiu essa revelação e nos faz repetir no Credo: "Per quem omnia facta
sunt": Por meio dele tudo foi criado.
Ouvindo estas palavras -
enquanto todos à nossa volta que não fazem mais que repetir "O mundo se
explica sozinho, sem necessidade da hipótese de um criador", ou "somos
frutos do acaso e da necessidade" - se dá, sem dúvida, um choque, mas é
mais fácil que se produza um conversão e floresça a fé depois de um
choque como esse que com uma longa argumentação apologética. A questão
crucial é: seremos capazes, nós que aspiramos reevangelizar o mundo, de
expandir nossa fé a essa dimensão? Nós realmente acreditamos, de todo o
coração, que "todas as coisas foram feitas por meio de Cristo e em vista
de Cristo"?
Em seu livro
Introdução ao Cristianismo, há muitos anos, Santo Padre, escreveu:
"A
segunda parte principal do Credo coloca-nos propriamente diante do
elemento cristão fundamental: a crença de que o homem Jesus, um
indivíduo executado na Palestina pelo ano 30, é o ‘Cristo' (ungido,
escolhido) de Deus, e mais: é o próprio Filho de Deus, centro e opção de
toda a história humana... Contudo, o primeiro impacto desta realidade
causa escândalo ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto vítimas
de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos à palhinha de um
único acontecimento histórico? Poderemos ousar fundamentar a nossa
existência inteira, e até a história toda, sobre o que não passa de
pobre palha de um acontecimento qualquer a boiar no grande oceano da
história?" [21].
Para estas questões, Santo Padre, nós vamos
responder sem hesitar, como faz o senhor nesse livro e como não se cansa
de repetir hoje, na sua qualidade de Sumo Pontífice: Sim, é possível, é
libertador e alegre. Não por nossas forças, mas pelo dom inestimável da
fé recebemos e pela qual damos graças infinitas a Deus.
* * *
[1] Bento XVI, Motu Proprio "Ubicunque et semper".
[2] João Paulo II,
Parole sull'uomo, Rizzoli, Milano 2002, p. 443; cf. anche Enc. "Fides et ratio", n. 88.
[3] J. Monod,
Il caso e la necessità, Mondadori, Milano, 1970, pag. 136-7. [Ed. original francesa: Jacques Monod,
Le Hazard et la necessité.
Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne. Seuil, Paris 1970; English trans.
Chance and Necessity. An Essay on the Natural Philosophy of Modern Biology, Vintage 1971].
[4] M. Planck, O conhecimento do mundo físico, (cit. por Timossi, op.cit. p. 160)
[5] J.H. Newman, in
The Letters and Diaries, vol. XXIV, Oxford 1973, pp. 77 s.
[6] J.H. Newman,
Apologia pro vita sua, Brescia 1982, p.277
[7] J.H. Newman,
Lo sviluppo della dottrina cristiana, Bologna 1967.
[8] Monod, op. cit. p. 136.
[9] P. Atkins, citado por Timossi, op. cit. p. 482.
[10] B. Pascal,
Pensamentos.
[11] M. Blondel et A. Valensin,
Correspondance, Aubier, Paris, 1957, p. 47.
[12] In Origene,
Contra Celsum, IV, 23 (SCh 136, p.238; cf. IV, 74 (ib. p. 366)
[13] Cf. M. Pohlenz,
O homem grego, Firenze 1962.
[14] In Origene, op. cit., IV, 30 (SCh 136, p. 254).
[15] Scolii a Dionísio Areopagita in PG 4, 536; cf. Dionísio Areopagita,
Lettera VI (PG, 3, 1077).
[16] G. Bardy, in Dct. Spir., III, col. 1389 s.
[17] São Leão Magno,
Sermo 21, 3: CCL 138, 88 (PL 54, 192-193)
[18] Diálogo com Motovilov, em Irina Gorainoff, Serafino di Sarov, Gribaudi, Turin 1981. p. 156.
[19] S. Atanasio, J. Quasten,
Patrologia, II, 22-83; Obras: PG 25-28.
[20] S. Gregorio Nazianzeno,
Discursos teológicos, III, 19 (PG 36, 100A).
[21] J. Ratzinger,
Introdução ao Cristianismo, Herder, São Paulo, 1970. Versão brasileira do Pe. José Wisniewski Filho, S.V.D., do original alemão
Einführung in das Christentum
[Traduzido do original italiano por Márcia Ameriot]